A gravura “Por uma cultura de paz”, do cartunista carioca Carlos
Latuff, afixada no gabinete do juiz João Damasceno, da 1ª Vara de Órfãos
e Sucessões, no Tribunal de Justiça, pode acabar na Justiça. A obra
mostra um policial militar com um fuzil, acertando um disparo num homem
negro crucificado. No meio policial, a presença do quadro numa
repartição pública não foi bem recebida: tanto que, como antecipou
Berenice Seara, na coluna “Extra, Extra”, o deputado estadual Flávio
Bolsonaro (PP) publicou no seu site um modelo de ação judicial para que
todos os PMs que se sentiram ofendidos peçam indenização ao cartunista e
ao juiz.
No documento, o deputado argumenta que qualquer PM
“possui legitimidade para ingressar em juízo, pleiteando indenização em
razão de ofensa à sua honra objetiva, subjetiva, moral, pois é flagrante
a constatação de que a obra do réu promoveu o constrangimento, a
humilhação pública e abalou a imagem da Polícia Militar”.
— A
imagem faz um pré-julgamento acusando todo PM de agir fora da lei, de
ser assassino, com o objetivo de denegrir a PM. O PM bota sua vida em
risco pela nossa segurança. Lamento que um juiz tenha tomado essa
iniviativa. Não é papel de um juiz usar sua repartição para expressão
suas posições ideológicas. Aposto que a primeira coisa que ele vai fazer
quando for assaltado é ligar para o 190 — alega Bolsonaro. O deputado
enviou ontem ofício à presidente do TJ, a desembargadora Leila Mariano,
pedindo a retirada da obra do local.
Para João Damasceno, a obra
não ofende a PM. Ele explica que a gravura foi concebida a partir de uma
conversa entre ele e o cartunista e que a presença do PM na obra é uma
metáfora da violência do estado nas periferias.
— Não há
referência a nenhuma pessoa específica. No caso, o policial representa a
violência praticada pelo estado, comum nas periferias. Já o homem
crucificado não é Jesus Cristo, é um homem negro, vítima desse sistema.
Fosse uma mulher poderia ser a juíza Patrícia Acioli (assassinada por
PMs em agosto de 2011) — diz Damasceno, que chama a medida de Bolsonaro
de “abuso de direito”.
O TJ, afirmou, por meio de nota, que ainda
vai analisar o material para autorizar sua presença no gabinete, mas não
precisou uma data.
.JPG)
Para artista, represália
O cartunista Carlos
Latuff reagiu às críticas de Bolsonaro. Para o autor da obra, a
proibição do quadro no gabinete do juiz pode ser considerado um
“atentado à liberdade de expressão”.
— Ações como a de Bolsonaro e
mesmo possíveis ações judiciais contra o juiz Damasceno são atentados
contra a liberdade de expressão e não condizem com a democracia.
Represalias contra quem se levanta contra os abusos da polícia são coisa
típica de um estado policial e nao uma democracia — alegou o artista ao
EXTRA.
Já o presidente da Associação de Ativos, Inativos e
Pensionistas da Polícia Militar, Miguel Cordeiro, fez críticas ao juiz e
à obra. Para Cordeiro, a presença de um policial acaba por expor a PM,
quando, “na maioria das vezes, o maior responsável pela violência é quem
a ordena, e não quem a executa”:
— Muito me admira essa ação por
parte de um juiz, uma pessoa que deveria se mostrar imparcial perante à
sociedade. Ninguém sabe se amanhã ele vai estar numa Vara Criminal,
julgando um PM. Existem bons e maus policiais, mas o responsável por
essa polícia violenta é quem a comanda. Ao invés de colocar a imagem de
um PM, o juiz deveria colocar a imagem do governador.
Para o juiz
João Damasceno, ‘se algum PM se vir representado pela obra, sua conduta
deve ser investigada’. Confira a entrevista com o juiz:
Por que o senhor escolheu a tela de Carlos Latuff para enfeitar seu gabinete?
A
imagem surgiu de uma conversa entre o artista e eu. A imagem retrata
apenas uma ocorrência comum nas periferias ao longo da História: as
vítimas da violência do Estado.
A inauguração da imagem é uma crítica à política de segurança do governo do estado?
A
segurança que assegure vida digna aos cidadãos não pode ser construída
com territórios ocupados e violações aos direitos humanos. Sou a favor
da desmilitarização da polícia.
O senhor defende a exposição pública de posicionamentos políticos de um juiz?
Todo juiz tem opinião. A explicitação de seu posicionamento é direito, ainda que ninguém possa ser obrigado a explicitá-lo.
Na imagem, o personagem crucificado é Jesus Cristo?
A
tela não é religiosa. Esse homem negro alvejado pela violência do
estado, para mim, não é Jesus. A crucificação era uma prática comum de
violência contra a população das periferias. Inclusive, junto com Jesus,
dois ladrões — tratados tal qual traficantes na época — foram
crucificados.
O senhor teme que policiais entrem na Justiça alegando que se sentiram ofendidos pela imagem?
Na
imagem não há ofensa. Não existe referência à pessoa individualizada.
Se algum PM se vir representado na obra, é o caso de investigar se já
esteve envolvido em autos de resistência ou outros abusos contra os
direitos humanos. Quem não esteve envolvido com tais ocorrências, não
vai se identificar com a gravura. Já a identificação pode se traduzir em
prova nova e possibilitar a reabertura de inquérito já arquivado. Além
do que já há jurisprudência no sentido de que a referência coletiva não
legitima pessoas a individualmente requererem retratação ou reparação.
O estado é repressor e esse deputado só quer aparecer!
ResponderExcluir